quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Sopro por minhas narinas o horror dos ermos.


Há regatos no deserto para o peregrino que ainda não caiu vítima do pitoresco.
"Ó noite, o que significa esses guerreiros tão lívidos?" cantou alguém.
Então me disseram que vc estava sofrendo...

Grandes novidades...disse a Ondina, e com isso quis dizer o que é incessante e raro o que te faz dizer:

"Eu só sofro".
Foi por isso que as grandes campinas do abandono seduziram a carne cansada, incapaz de suportar tanto espírito adormecido junto ao visco doloroso de seu tardio despertar.

Meu Eu é a dor do mundo que procura um meio para se anunciar.

Mas eu não vou deixar. Eu vou destruir esse duplo fantasmagórico chamado "Leonardo".

Com o desaparecimento desse Eu postiço também pode sumir toda dor do mundo que em mim converge.

Começa então a era dos adeuses.

Aonde mesmo os "princips sederunt" dos que chegavam...

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Exórtias antigas

“A chave que nos tornará mestres da natureza interior ficou enferrujada desde o dilúvio. Ela chama-se: velar. Velar é tudo. O homem está firmemente convencido de que vela; mas, na realidade, está preso numa rede de sono e de sonho que ele próprio teceu. Quanto mais apertada é essa rede, mais poderosamente reina o sono. Aqueles que estão presos nas malhas dessa rede são os adormecidos que, indiferentes e sem pensamentos, caminham através da vida como rebanhos de animais levados para o matadouro. Os sonhadores vêem através das malhas um mundo quadriculado, distinguem somente aberturas enganadoras e agem em conseqüência, sem saber que esses quadriculados são apenas fragmentos insensatos de um todo enorme. Esses sonhadores não são, como talvez o suponhas, os lunáticos e os poetas; são os trabalhadores sem-repouso do mundo, os possessos da loucura de agir. Assemelham-se a escaravelhos feios e laboriosos que se arrastam ao longo de um cano liso para nele mergulharem ao chegar lá em cima. Dizem que velam, mas aquilo que julgam uma vida não é senão um sonho, determinado antecipadamente nos mínimos pormenores e subtraído à influência da sua vontade. Existiram e ainda existem alguns homens que descobriam que sonhavam, os pioneiros que avançaram até aos baluartes detrás dos quais se esconde o Eu eternamente desperto – videntes como Descartes, Schopenhauer e Kant. Mas eles não possuíam as armas necessárias para a tomada da fortaleza e o seu apelo ao combate não acordou os adormecidos. Velar é tudo! O primeiro passo para esse objetivo é tão simples que qualquer criança pode fazê-lo. Só aquele que tem o espírito falsificado esqueceu como se caminha, e mantém-se paralisado sobre os dois pés, por não querer privar-se das muletas que herdou dos seus antecessores. Velar é tudo. Vela em tudo o que fazes! Não te julgues já desperto. Não, tu dormes e sonhas… Reúne todas as tuas forças e espalha um instante pelo teu corpo este sentimento: agora, eu velo! Se o conseguires, reconhecerás que o estado no qual te encontravas surge então como uma modorra e um sono. Este é o primeiro passo hesitante do longo, muito longo percurso que leva da servidão ao completo poder. Desta forma avança, de despertar em despertar. Não existe pensamento tormentoso que desta maneira não possas banir. Ele fica para trás e já não te pode atingir. Estendes-te sobre ele como a copa de uma árvore se eleva por sobre os ramos secos… E as dores desprender-se-ão de ti como folhas mortas, quando essa vigília se apossar igualmente do teu corpo. Os banhos gelados dos brâmanes, as noites de vigília dos discípulos de Buda e dos ascetas cristãos, os suplícios dos faquires, nada mais são que [meros] ritos estereotipados, indicando que ali se erguia outrora o templo daqueles que se esforçavam por velar. Lê as Escrituras Sagradas de todos os povos da Terra. Em cada uma delas passa como um fio vermelho a ciência dissimulada da vigília. É a escada de Jacó, que combate toda a “noite” com o anjo do Senhor, até que chegue o “dia” e obtenha a vitória. Deves subir, um degrau após outro, os degraus do despertar, se queres vencer a morte. O degrau inferior já se chama: gênio. Como devemos chamar os degraus superiores? Permanecem desconhecidos da multidão e são tidos como lendas. A história de Tróia também foi considerada uma lenda, até que finalmente um homem arranjou coragem de investigar por si mesmo. Sobre esse caminho da vigília, o primeiro inimigo que defrontarás será o teu próprio corpo. Ele lutará contigo até o primeiro cantar do galo. Mas se vislumbrares a luz da vigília eterna, que te afasta dos sonâmbulos que supõem ser homens mas ignoram serem deuses adormecidos, então o sono do teu corpo desaparecerá também e o Universo submeter-se-á a ti. Poderás então operar milagres, se quiseres, e já não estarás reduzido a um humilde escravo a espera de que um cruel e falso deus seja suficientemente amável para te cumular de presentes, ou de te cortar a cabeça. Há evidentemente a felicidade do bom cão-fiel: servir um amo. Ela deixará de existir para ti – mas sê franco para contigo mesmo: gostarias, mesmo agora, de trocar com o teu cão? Não te deixes amedrontar de não atingir o objetivo nesta vida. Aquele que descobriu este Caminho, regressa sempre ao mundo com uma maturidade interior que lhe torna possível a continuação de seu trabalho. Ele nasce como “gênio”. O caminho que te mostro está semeado de acontecimentos estranhos: mortos que conheceste hão de erguer-se e falar-te! São apenas imagens [figurativas]. E também aparecerão silhuetas luminosas para te abençoar. São apenas imagens, formas exaltadas pelo teu corpo que, sob influência da tua vontade transformada, morrerá de uma morte mágica e se tornará espírito, tal como o gelo, atingido pelo fogo, se dissolve em vapor. Só quando tiveres abandonado em ti o cadáver, poderás dizer: agora o sono afastou-se de mim para sempre. Então, dar-se-á o milagre em que os homens não acreditam – porque, enganados pelos seus sentidos, não percebem que matéria e força são a mesma coisa – nem compreendem, esse milagre que, mesmo se o enterrarem, não haverá mais cadáver no caixão. Só então poderás diferenciar o que é realidade ou aparência. E certamente aquele que encontrares, só poderá ser um dos que seguiram o Caminho antes de ti. Todos os outros serão apenas sombras. Até ali tu não sabes se és a criatura mais feliz ou a mais infeliz. Mas nada receies. Nem um sequer dos que seguiram por esse caminho da vigília, mesmo se alguma vez se perdeu, jamais foi abandonado pelos seus Guias. Quero porém dar-te um sinal pelo qual poderás reconhecer se uma aparição é realidade ou miragem: se ela se aproxima de ti, e a tua consciência se perturba, se as coisas do mundo exterior tornam-se vagas ou desaparecem, desconfia. Acautela-te! A aparição não passa de uma parte de ti mesmo. Mas, se não a compreendes, é apenas um espectro sem consistência, um gatuno que consome [suga energia], parte da tua vida. Os que exploram a força da alma, são piores do que os gatunos do mundo. Atraem-te como fogos-fátuos nos pântanos de uma esperança enganadora, para te deixarem só nas trevas e desaparecerem para sempre. Não te deixes cegar por algum milagre que pareçam fazer por ti, nenhum nome sagrado que se dêem, nem profecias que exprimam, mesmo que elas se realizem. Eles são os teus inimigos mortais, expulsos do inferno do teu próprio corpo e contra os quais deves lutar pelo domínio. Sabe que as forças maravilhosas que eles possuem são as tuas próprias – desviadas por eles para te manterem na escravatura. Eles não podem viver fora da tua vida, mas se os venceres ficarão aniquilados, como ferramentas mudas e dóceis, que poderás empregar segundo as tuas necessidades. Inúmeras são as suas vítimas entre os homens. Lê a história dos visionários e dos sectários e compreenderás que o caminho está semeado de crânios. Inconscientemente, a humanidade ergueu contra eles um muro: o materialismo. Esse muro é uma defesa infalível, é uma imagem do corpo mas é também o muro de uma prisão que dissimula a vista. Atualmente estão dispersos e a fênix da vida interior ressuscita das cinzas nas quais esteve deitada durante muito tempo, como morta, mas os abutres de outro mundo também começam a bater as asas. Por isso, deves tomar cuidado. A balança sobre a qual deporás a consciência mostrar-te-á quando podes ter ou não confiança nessas aparições. Quanto mais desperta ela estiver, mais se inclinará a teu favor. Se [eventualmente] um guia, irmão de outro mundo espiritual te quiser aparecer, deverá poder fazê-lo sem despojar a tua consciência. Podes pousar a mão sobre ele como Tomé, o incrédulo. Seria fácil evitar as aparições e seus perigos. Basta conduzir-te como o homem vulgar. Mas que se ganha com isso? Continuarás a ser um prisioneiro na jaula do teu corpo, até que o carrasco “Morte” te conduza ao cadafalso. O desejo dos mortais de ver os seres sobrenaturais, porém, é como um grito que desperta até os fantasmas do inferno, porque semelhante desejo não é puro - é mais avidez do que desejo -, porque quer “tomar” de qualquer maneira, em vez de gritar para aprender a “dar”. Todos os que consideram a Terra como uma prisão, todas as pessoas piedosas que imploram a libertação, evocam, sem se aperceberem o mundo dos espectros. Faze-o também tu mesmo. Mas, conscientemente. Para aqueles que o fazem inconscientemente existirá uma mão invisível que os possa retirar do pântano onde se atolam? Eu não acredito. Quando sobre o Caminho do despertar atravessares o mundo dos espectros, reconhecerás aos poucos serem eles simplesmente pensamentos, que de súbito poderás ver com os teus próprios olhos. Eis por que te parecem estranhos ou criaturas, pois a linguagem das formas é diferente da do cérebro. Chega então o momento em que a transformação se dá: os seres humanos que te rodeiam transformar-se-ão em espectros. Todos aqueles que amaste serão, de súbito, [como que] larvas. Mesmo o teu próprio corpo. Não se pode imaginar mais terrível solidão do que a do peregrino no deserto, e quem não sabe encontrar aí a Fonte da vida morre de sede. Tudo o que aqui te digo se encontra nos livros de homens piedosos de todos os povos: a vinda de um novo reino, a vigília, a vitória sobre o corpo e a solidão.vê no entanto um abismo intransponível nos separa dessas pessoas piedosas: elas supõem que se aproxima o dia em que os bons entrarão no paraíso e os maus serão atirados para o inferno. Nós sabemos que um tempo virá em que muitos despertarão e serão separados dos adormecidos que não podem compreender o que significa a palavra vigília. Nós sabemos que não existe o bom e o mau, mas apenas o exato e o falso. Eles crêem que velar significa manter os sentidos lúcidos e os olhos abertos durante a noite, de maneira que se possa fazer as orações. Nós sabemos que a vigília é o despertar do Eu imortal, e a insônia do corpo uma conseqüência natural. Eles crêem que o corpo deve ser descurado e desprezado porque é pecador. Nós sabemos que não existe pecado; o corpo é o começo de nossa obra e viemos à Terra para transformá-lo em espírito. Eles crêem que deveriam viver na solidão com o nosso corpo, para purificar o espírito. Nós sabemos que o nosso espírito deve primeiramente isolar-se para transfigurar o corpo. Só a ti cabe a escolha do caminho a tomar: o deles ou o nosso. Deves agir segundo a tua própria vontade. Não tenho o direito de te aconselhar. É mais salutar colher, segundo a tua própria decisão, o fruto amargo de uma árvore, do que ver pendurar o fruto doce aconselhado por outrem”…

[.][Cf. Gustav Meyrink: excerto do romance Le Visage Vert, em O Despertar dos Mágicos, Introdução ao Realismo Fantástico, obra de Louis Pauwels e Jacques Bergier, Difusora Européia do Livro, 1969, p. 426/430]. – [07.05.04. -